__________estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. 

Antes de qualquer coisa, este é um livro banal. Clarice, como autora, não é refém do fato, mas sua literatura desenrola-se a partir do impacto interno do fato, com a internalização do que está lá fora, com o conhecimento do fato e daquilo provocado por ele, até que, si em si mesmo ocasione mais que um tornado.
Devo alertá-lo, querido leitor, também, de que cada um interpretará a obra de Clarice — tal qual qualquer obra, no entanto não tal qual — porque o leitor e seu interior narram mais a história que a própria G.H. O leitor é mais G.H. que a própria, que é G.H. até no couro das valises.

Fato? Qual fato?
G.H. é rica, fato.
Entra no quarto da empregada, fato.
Visualiza a barata, fato.
Esmaga-a com a porta do guarda-roupa, fato.

E é tudo de concreto que há, pois o resto é tão maleável quanto líquido, preenche cada canto de cada superfície interior, passa a ser parte de nós. E por quê?
Porque somos mais G.H. que a G.H. do couro das valises.
Porque G.H. não é mais G.H., depois da barata. É como um desenho de si mesma e suas angústias.

Essa imagem de mim entre aspas me satisfazia, e não apenas superficialmente. Eu era a imagem do que eu não era, e essa imagem do não-ser me cumulava toda: um dos modos mais fortes é ser negativamente. Como eu não sabia o que era, então “não ser” era a minha maior aproximação da verdade: pelo menos eu tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”, tinha o meu oposto. O meu bem eu não sabia qual era, então vivia com algum pré-fervor o que era o meu mal. 

É impossível deixar Clarice passar em branco, com sua barata e seus medos. É impossível fechar a última página sendo igual era quando abriu a primeira. Da primeira à última, há perdas e há ganhos. E há o leitor, mero espectador de uma epifania — a própria. E por quê? Porque não existe mais eu, pois existem eus, facetas de si em coexistência organizada, e há ordem na desordem, desordem da ordem, há caos na paz. E cada minuto na companhia de G.H. é temor de que, apesar de estarmos no mesmo lugar, estejamos vivendo uma outra vida. A vida que nos pertence não mais é a mesma de um segundo atrás, pois há  mais, muito mais, há a consciência do mundo, e o Mundo é grande demais para caber em si. Nós somos grandes demais para caber em si, complexos demais para sermos refém dos fatos que não sejam os fatos de nós mesmos.

Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama era lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade. 
Clarice dói, porque revela para nós algo de nós mesmos, fazendo com que sejamos espectadores das maravilhas e podridões internas, e dói, porque é real e irremediável como uma tragédia. Estamos lá, sempre, por mais que ignoramo-nos. E uma hora, descobrimo-nos novamente.
É indescritível a experiência que tive com G.H., com suas valises e a barata. Pavor, nojo, repulsa, estou vivo. Paro, leio, penso, penso. Sou eu? Penso. E então adoro.


2 Comentários

  1. Adorei a resenha, e o livro realmente é fantastico adoooro ><
    beeijos
    bellapagina.blogspot.com.br
    Face: Bella Página

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Ola divirta-se fica a vontade sua opinião é muito importante para nossa equipe
bjks até a proxima. *-*

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